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Cultura

A Ladainha dos Santos Passos

A cerimónia da Ladainha dos Santos Passos é um rito de luto e de expiação. Revive-se os sofrimentos do Salvador, subindo um Calvário simbólico pelas ruas da povoação, cantando os martírios da Paixão e Morte, em versos tristes e num tom lamentoso e arrastado, que têm um cunho de arrependimento, pedido de perdão e de salvação. Mas o tom plangente atinge o seu máximo na Ladainha, enquanto se caminha de um Passo para o outro, no coro quase chorado que canta “Misere nobis”. Tudo parece mudar depois do último Passo, quando se volta para a Igreja: o tom e o texto dos versos tornam-se vivos e alegres prometendo uma emenda dos erros e uma nova vida, uma renovação, um renascimento.
A encomendação das Almas é uma cerimónia ainda mais impressionante.
Realiza-se à meia-noite no silêncio da povoação adormecida, começa sempre à porta do Cemitério e repete-se nas encruzilhadas. A meia-noite é uma hora carregada de força sagrada, como o meio-dia, que são ambas “horas abertas”: Situam-se entre as duas partes do dia e são curtos instantes em que a ordem pode ser alterada. O tempo foi fechado pelo toque das Ave-Marias e a partir daí pode acontecer toda a sorte de coisas perigosas ou surpreendentes.
Os cantos da “Encomendação”realizam-se nas encruzilhadas, porque é nelas que se reúnem as Almas e são o centro do mundo, lugares de passagem da vida para a morte, de um mundo para o outro. Uma encruzilhada é um lugar eminentemente sagrado e constitui uma ruptura com o espaço securizante da aldeia. Tem a forma de uma cruz, de onde partem caminhos para os quatro pontos cardeais. A cruz liga o espaço e  atrai  para o  centro as forças benfazejas que se encontram nos quatro pontos cósmicos, ou desliga-o rejeitando para os mesmos pontos as forças prejudiciais libertando o “centro”.
Além das encruzilhadas o grupo coral da “Encomendação” também canta nas Alminhas que são pequenos monumentos incrustados nas paredes de uma encruzilhada, espécie de nichos que ostentam uma pintura ou azulejo protegido por um vidro. Representam uma cena com almas no meio das chamas, agarradas aos pés de um Santo ou ao manto da Virgem. São acompanhadas de uma frase rimada:” ò vós que ides passando, lembrai-vos
de nós que estamos penando!”. Têm sempre acesa uma lamparina, flores e às vezes espigas de milho ou trigo, como doação de primícias. Para a sua manutenção contribuem as mulheres que vivem naquela rua. As almas são sempre boas, e representem o espírito dos antepassados que protegem as culturas agrícolas e fecundam a terra.
Os participantes desta cerimónia vão buscar as Almas ao cemitério, e “encomendam”, quer dizer, chamam, as almas dos antepassados, de quem herdaram os campos, para as fazer intervir no processo de germinação das sementeiras: é uma cerimónia propiciatória. As almas são femininas e sempre boas, por oposição aos espíritos que são masculinos e maus; aqueles que infringiram os valores comunitários da aldeia: roubaram terras e casas, não pagaram os salários, oprimiram os pobres e as viúvas; tornam-se “almas penadas” que assombram os vivos sem encontrar repouso. Estas devem ser desencomendadas. (RPP, 186, 187)
O tom de voz é arrastado e monocórdico: canta-se uma sílaba de cada vez, prolongada e repetidamente. No silêncio da noite o efeito é quase fantasmagórico, mas de uma beleza estética impressionante.
Estas cerimónias não têm ligação com a hierarquia católica, são inteiramente populares.
A Ladainha dos Santos Passos realiza-se em Alcains nas noites de Sexta-feira da Quaresma, desde tempos imemoriais. Consiste numa procissão que percorre as ruas da vila, ajoelhando e sete Passos, onde canta versos alusivos à Paixão de Cristo e, enquanto se desloca para o Passo seguinte, entoa uma Ladainha aos Santos. As quadras de simples de sabor popular e os cânticos foram passados de geração em geração. Antigamente só iam homens com capotes chamados gabões, em que escondiam os filhos ou netos, para os proteger do frio da noite. Levavam lanternas de lata, com velas, para iluminar as ruas escuras, nessa altura sem iluminação pública. O solista levava um livro com o texto, mas o coro levava os versos de memória, porque a maioria não sabia ler. Enquanto percorriam as ruas da aldeia juntava-se “meio povo” que se integrava na cerimónia, segundo as memórias do Senhor Moisés Rafael. Hoje a população jovem não mostra muito interesse por este ritual, pelo que todos sentimos que corre o risco de se extinguir.
O grupo coral, nos nossos dias é constituído por homens e mulheres, que se dividem em duas vozes, uma “fina” e outra “grossa” e é orientado por um solista. Partem em procissão do salão paroquial, com uma antiquíssima cruz, propriedade particular, enfeitada com flores e ramos de oliveira. A cruz é transportada por um rapaz jovem e ao lado duas “alanternas” com velas acesas, emprestadas pelo Senhor Prior. Vão assim percorrer os sete passos da paixão do Senhor, que são altares de granito, encimados por uma cruz, que estão encastrados nas casas da terra. São antiquíssimos e muito bonitos e quando as casas que os sustêm são remodeladas, são substituídos por outros novos menos majestosos, como o da parede exterior da Igreja e do largo de santo António. Antigamente havia sete quadros pintados a óleo, com as cenas da Paixão a que os cânticos aludiam, que eram colocados nessas noites, em cada altar. Como só restam dois desses quadros, as mulheres da vizinhança enfeitam cada Passo com um crucifixo, jarras com flores (apesar de proibição litúrgica de flores na Quaresma) e velas que acendem da Ladainha. Este ano caiaram um dos passos que estava escurecido pelo tempo. Também procuram evitar o estacionamento de carros colocando bancos perto dos altares. Ao longo da Quaresma aumentou progressivamente o número de participantes na procissão; nem todos cantam, alguns apenas ajoelham rezam as orações que conhecem. Perto de cada passo juntam-se pessoas idosas e crianças que assistem e depois vão para casa, outras fazem-no nas janelas e portas das casas próximas. Para todos é um acontecimento. Nota-se um grande fervor nos mais velhos, curiosidade nos mais novos.

 

Ataíde, Maria Vitória, Alcains Tradições de uma Vila da Beira Interior, Editora Alma Azul, 2000, pág. (48-52)

 

 

A Festa das Papas de Alcains

Conta-se que, entre 1600 a 1640, a beira Baixa foi invadida por sucessivas nuvens de gafanhotos. Alcains não escapou ao terrível flagelo e as suas searas de centeio, feijão e milho, assim como as suas hortas, foram dizimadas pela praga daqueles insectos.
As pessoas da nossa terra e a de outros povos lamentavam-se, pois ficaram inexoravelmente, votadas à miséria e à fome. Todos se queixavam, sem saber como deviam aguentar tal praga tão indesejável. Alguns lembravam-se de acender fogueiras, enquanto outros, com chocalhos e latas nas mãos, faziam um barulho infernal para ver se de algum modo, afugentavam os daninhos insectos. Todos os esforços empregados foram, porém, baldados, pois, a quantidade de gafanhotos era tal que a própria luz não lograva atravessá-la.
O nosso povo angustiado com a ocorrência, não podendo remover nem destruir a praga com meios materiais, resolveu pedir aos santos da sua devoção que afastassem aquilo que se suspeitava ser castigo da sua impiedade.
Lutando com a fome e com outros males que ela provocava, o povo implorou a protecção de Nossa Senhora, de Nosso senhor e de São Pedro.
Todos os alcainenses fizeram solene promessa de realizar três festas anuais em domingos consecutivos de Agosto. Para a efectuação das mesmas contribuiriam todo o povo. Para organizar e dirigir cada uma delas, seria nomeada uma comissão composta de três individualidades competentes, o Juiz, o Tesoureiro e o Escrivão.
A primeira festa seria em louvor de Nosso Senhor, pela graça obtida, no terceiro domingo de Agosto, e constaria de solenidades religiosas, incluindo uma procissão que percorreria as ruas do costume. Na segunda-feira seguinte dariam um bodo a todos os pobrezinhos da localidade. Durante muitos anos se cumpriu a promessa tal como a fizeram, ma há já algumas dezenas de anos que o bodo não se faz apenas se mantém a festa religiosa.
A segunda festa realizar-se-ia anualmente, no quarto domingo de Agosto e na segunda- feira seguinte, em agradecimento a Nossa Senhora da Conceição.
O domingo seria destinado para a realização da festa em honra de Nossa Senhora com grande solenidade, em que havia também procissão. O dia de segunda-feira seria reservado inteiramente, para festejos públicos e obras de “caridade”
O povo de então comprometera-se a oferecer um jantar, isto é, um bodo de papas às crianças e pessoas pobres, e, para isso, nesse mesmo dia, far-se-ia um peditório no povo.
Cada festeiro encarregar-se-ia de fazer um peditório público na sua área. Para isso, convidaria um certo número de rapazes e de raparigas, os que entendesse suficientes para formar um bom “rancho”.Convidaria também tocadores de pífaros, de castanholas e adufes, tanto dum como doutro sexo. Por volta das onze horas, reunia-os a todos em sua casa, oferecendo-lhes bolos e vinho. Depois disto, percorriam as ruas da povoação, tocando alguns rapazes e raparigas em conjunto, os seus adufes, pífaros e castanholas, enquanto outros, ao som das bonitas “moda” daquele tempo, iam bailando com desenvoltura. Assim iam percorrendo as ruas, uma a uma, enquanto outros rapazes também do rancho, com sacos aos ombros, iam pedindo para a festa. As ofertas na sua maior parte, eram de milho miúdo (painço) e os que não tivessem aquele milho dariam outro cereal, ou dinheiro. Toda a gente contribuía para as festas. Algumas pessoas não tinham milho miúdo do seu mas nas vésperas da festa, trocavam-no por batatas ou por feijão, por centeio ou por azeite. Em geral, todos davam milho painço, pois, as papas naquele tempo, inteiramente desse milho.
Todo o povo partilhava da alegria da festa, todos viviam com prazer, o delicioso dia das festas das papas.
Percorridas as ruas da povoação, cada rancho, regressava a casa do seu festeiro, descansava e, novamente lhe eram servidos bolos e vinho. Momentos depois, alguns rapazes de sacos de milho miúdo, acompanhados de algumas raparigas, todos vestidos com os seus trajes de festa dirigiam-se para os moinhos manuais.
Havia então, dezenas destes moinhos. Na estação estival tinham grande movimento. Obtida a farinha voltavam à casa do festeiro. Aqui, as raparigas tiravam o “ carolo” dos sacos e separavam-no.
A farinha era deitada na água e lavada cuidadosamente, repetidas vezes. Depois acendiam em plena rua, tantas fogueiras quantas fossem as caldeiras calculadas. Na generalidade, cada festeiro fazia de dezoito a trinta caldeiras de papas. A caldeira de latão teria o volume de 20 a 25 litros. Cada uma cheia de água era colocada numa trempe por debaixo da qual se acendia uma grande fogueira. Cada rapariga cuidava da sua. Se tinha namorico, este ajudava-a a fazer as papas, colocando lenha por debaixo da caldeira. Os rapazes nesse dia, arranjavam colheres de pau muito compridas, aí de um metro e tal, e era vê-los tirando de longe papas das caldeiras, com aborrecimento por vezes das raparigas.
Ainda hoje se faz a Festa das Papas.
Neste dia festivo como se deduz, o movimento é grande e a animação é geral.
Finalmente, as papas ficam feitas pouco antes do pôr-do-sol, e os rapazes de rancho põem na rua quatro ou cinco tabuleiros de madeira, com mais de um metro de comprimento, onde se vazam as caldeiras. As pessoas pobres e as criancinhas munidas das suas colheres, aproximam-se dos tabuleiros de papas e comem alegremente até fartar.
Na festa comparticipam as criancinhas, sorridentes, cada uma com a sua colher na mão dum dos tabuleiros cheios de papas.
Algumas delas levam pratos e, no fim, conseguem enchê-los e levá-los para suas casas.
A povoação despovoa-se e aglomera-se nos locais das festas. Centenas de forasteiros vinham noutros tempos e, muitos, ainda vêm contemplar aquela típica e, talvez, única festividade do País.
Retiradas as crianças e outras pessoas pobres, os componentes do rancho e a família do festeiro juntam-se em casa deste, e aí é servida outra ceia de papas, bolos e vinho. Todos comem e bebem com prazer. A povoação está em festa e a alegria jorra, brilha no povo.
Terminando o jantar das papas, o rancho sai para a rua e, em frente da casa do respectivo festeiro, dança-se e canta-se, onde todos tomam parte, assim como rapazes e raparigas que ali ocorrem, para se divertirem.
Além de tudo aquilo, o festeiro tem na via pública, encostadas à parede da sua casa, mesas, onde muitas pessoas do povo vão colocar açafates com centeio ou batatas, com milho ou feijão, com uvas ou cebolas, melancias, e outras dádivas, em geral produtos agrícolas. Oferecem também salvas com bolos, com aves ou animais assados e vinho, pão e queijos e muitas outras coisas de valor.
À noite, o povo junta-se às portas dos festeiros e cada um deles encarrega um ou mais homens, com boa voz de fazer o leilão das oferendas. O leilão é alternado com descantes populares.
Geralmente, o leilão dura até à meia-noite, mas os descantes e danças prolongam-se até muito mais tarde.
Os festeiros antigamente erigiam, junto das mesas das ofertas, altares aos santos em honra de quem eram feitos os festivais.

Actualmente, as festas sofreram algumas modificações. O milho para as papas já não é o “miúdo”, e dos moinhos manuais onde o reduziam a “carolo” creio não existir já nenhum.
Os adufes, as castanholas e os pífaros foram substituídos pelos harmónios, e, actualmente, pelos instrumentos de sopro e de corda. O mais, mantém-se sem grande modificação. O povo, actualmente, faz reparo, dizendo que há festas a mais. As festas das Igrejas são comparticipadas pelos festeiros que uns domingos antes da festa, fazem um peditório pelo povo. Elas incluem a missa festiva sempre cantada, o sermão e a procissão. Quando sobra algum dinheiro, distribuem-no pelos pobres da terra. Quando o dinheiro falta é posto do bolso dos próprios festeiros.
No quinto domingo de Agosto se é o caso, ou no primeiro de Setembro realiza-se a festa em honra de São Pedro que continua na segunda-feira seguinte.
Quando em 1640, se fundou a ermida de São Pedro, as festas a este santo faziam-se nela. Actualmente, é costume trazer em procissão a imagem de São Pedro uns dias antes para o local da festa. É costume não a levar para a sua Capela enquanto não chover com abundância.
As promessas a Nosso senhor, a Nossa Senhora da Conceição e a São Pedro tiveram início, diz-se, por volta de 1600.
Depois de 1640 foram registadas novas pragas de gafanhotos. Nunca mais porém, os efeitos foram tão desastrosos como os daquela vez que deixou tão tristes recordações. Uma coisa é certa: as pragas de gafanhotos deixaram de devastar as searas com aquela intensidade, depois do voto solenemente feito pelo nosso povo.

 

ROQUE, Sanches, Alcains e a sua História, Castelo Branco, 1975; Pág (168-171)

 

 

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